Por Thiago Rocha
O
título do texto é, naturalmente, bastante provocador. Talvez tão provocador
quanto julgo aberrante essa lógica da produção industrial e narcisisticamente
compulsiva que ronda a academia e que quase que obrigatoriamente acaba sugando
aqueles que de alguma forma se envolvem com ela. É a tal produção pela
produção. Ou melhor, a produção para a produção de um ‘bom’ currículo –
gordinho, recheado, robusto – para o pesquisador. O compromisso com o
conhecimento, nesse caso, muitas vezes vai pro ‘beleléu’. Aí vira essa guerra
de quem publica mais, em quais revistas que possuem quais pontuações, em
parceria com quais ‘top-tops’ etc. E da guerra, infelizmente, se faz a
mercantilização, o comércio. Isso mesmo. Um comércio antiético, onde a única
lei que importa é a da quantidade pela quantidade, da infinita acumulação de
capital; em suma, uma prática extremamente ‘antiacadêmica’, se levarmos em
conta o que a academia deveria ser (para quê ela nasceu) e o que ela se tornou
de verdade (como ela está sendo ‘enterrada’).
Não que
eu esteja colocando a ‘culpa’ de tal lógica inteiramente no capitalismo – assim
eu acabaria dando espaço para me chamarem de paranoico, raso e imprudente. No
entanto, é a ele que, em última instância, esse sistema serve atualmente – quem
ele imita e por quem ele, por tabela, se limita –, e isso considero ser
razoavelmente difícil de negar. Hannah Arendt fez um comentário bastante
interessante sobre a origem da academia na Grécia Antiga e o seu princípio
motivador: “assim como a libertação do trabalho e das preocupações com a vida
eram pressupostos necessários para a liberdade da coisa política, a libertação
da política tornou-se pressuposto necessário para a liberdade da coisa
acadêmica” (O que é política, p. 63); neste caso, “ao mundo das opiniões
mentirosas e do falar enganador devia ser oposto um mundo contrário da verdade
e do falar adequado à verdade; à arte da retórica, a ciência da dialética” (pp.
64-65). Mas aqui nesse ponto eu me pergunto: será que alguma vez a academia
conseguiu ser isso que ela tanto quis ser? Acredito que não. Pelo menos, não
nesses termos.
O fato
é que de uma forma ou de outra a ‘ciência’ – de maneira bem geral – sempre
esteve atrelada a algum poder específico – religioso, político etc. – até se
tornar, ela mesma, um poder próprio por excelência, o poder da ‘verdade’ – a
verdade que leva o carimbo de ‘cientificamente comprovada’, a verdade revelada
por aqueles que compreendem o mundo muito melhor do que os meros mortais que se
deliciam com ‘as opiniões mentirosas’ que rondam por aí e que contaminam o
mundo. Mas será que já conseguimos mesmo nos desvincular totalmente da ‘arte da
retórica’ para enfim chegar a uma verdadeira ‘ciência da dialética’, por
exemplo? Sinceramente, acho que não – ou melhor, quando isso acontece, é meio
que contra nossa vontade, quase um ‘erro de cálculo’ nos termos de Rancière.
Bakhtin já dizia que todo conhecimento já nasce para ser superado, e que, por
isso, é sempre mais interessante (dialeticamente produtivo, digamos) possuir
adversários qualificados do que estar rodeado de ‘aliados’ medíocres – nada
mais coerente.
Mas o
que dizer do evidente controle político que determinados grupos (‘correntes de
pensamento’) fazem dos seus respectivos programas para engessar a ‘batalha
dialética’ e, assim – ao boicotar ao máximo as visões contrárias às suas –,
estabelecer a sua verdade como hegemônica? O que dizer dessa aberração que
transforma a ciência em dogma, em fé? Será que essa prática está realmente
preocupada com o conhecimento em si, ou apenas com o ego dos que obtêm o
controle político da ‘verdade’ naquele determinado espaço? Outro dia ouvi um
relato sobre uma professora que em plena sala de aula (numa pós-graduação!)
soltou a seguinte pérola: “eu não sei o que é que os anarquistas e os
pós-modernos ainda estão fazendo na academia; já que eles a criticam tanto, não
deveriam estar lá”. É mole? Seria cômico se não fosse trágico. E o pior é que
está cheio de gente por aí que pensa de modo parecido, por mais que poucos
tenham coragem de falar tal aberração em público.
A
capitalização do conhecimento
E é
aqui nesse ponto que a aberração política é complementada pela aberração
mercadológica. Afinal, sinceramente, qual é a motivação principal de um
pesquisador quando faz (e publica) um artigo, por exemplo? Idealmente, não
temos dúvida de que deveria ser o compromisso com o conhecimento, a crença de
que aquilo de alguma forma trará uma contribuição clara e efetiva para as
discussões daquele campo. Mas infelizmente sabemos que muitas vezes não é
exatamente isso que acontece. Normalmente publicamos porque temos que publicar:
porque o programa ao qual estamos vinculados nos cobra (e ele quer e precisa
pontuar cada vez mais porque o governo e suas agências de financiamento também
lhe cobra isso); porque queremos e precisamos ‘fazer’, rechear, nosso currículo
para podermos ter uma boa vitrine de pesquisador quando formos concorrer a uma
vaga num concurso, por exemplo – ou para manter nossa posição intocada em
alguma instituição; e porque, claro, também é bom para o ego saber que
publicamos tantos artigos em tempo recorde nas melhores revistas do Brasil e do
mundo na nossa área – o que rapidamente fará de nós uma ‘referência’ naquele
campo do conhecimento. E é aqui que a lógica do quê se publica se transforma na
do quanto se publica; é aqui que a qualidade acaba se vendendo ao mero aspecto
quantitativo, o que proporciona a formação de um grande mercado (às vezes,
máfia mesmo) de publicação.
Não
estou aqui criticando simplisticamente o fato de se publicar. Muito longe
disso. Afinal, como dizia Sérgio Sampaio, “um livro de poesia na gaveta não
adianta nada; lugar de poesia é na calçada”; da mesma forma, lugar de artigos,
de ideias, de descobertas científicas é nos livros, nas revistas, e, mais
ainda, idealmente, na calçada também. O problema abordado é o como e o para
quem se publica. No primeiro caso, o grande contrassenso é justamente a ‘máfia’
inescrupulosa que muitas vezes se cria para poder publicar cada vez mais. E
minha crítica, naturalmente, está direcionada a esses casos (absolutamente
reais). Um exemplo são as panelinhas do tipo “pô, bicho, bote meu nome aí no
seu artigo, que quando eu fizer o meu eu coloco seu nome também”. Ou então
quando o cara publica o mesmo artigo várias vezes mudando apenas algumas
palavras em um ou outro parágrafo. Ou ainda quando o cidadão se aproveita do seu
título acadêmico (de doutor, mais comumente) e apenas ‘assina’ artigos de/com
outros (que não possuem aquela qualificação exigida por tal ou qual revista)
para que o artigo possa ser aceito e publicado – muitas vezes o cara não sabe
nem o que está escrito no ‘seu’ próprio texto.
Ou
também quando o professor dá uma disciplina na faculdade, pede que cada aluno
escreva um artigo (publicável, claro) como avaliação e no final ele ‘corrige’,
assina junto com os estudantes e engorda seu Lattes em uns 30 ou 40 quilos numa
garfada só. Aí depois – o que é ainda mais bizarro – esse cidadão vai para o
MSN (hoje em dia, Facebook e Twitter) e estampa o resultado do seu ‘sucesso’:
“30 artigos publicados em 2011”. Parabéns para você, meu caro. Mas realmente
não é nesse tipo de ciência que eu, particularmente, acredito. Só que o governo
e as universidades parecem crer e estimular isso mais que ninguém, e de maneira
extremamente superficial. Aí, no fim das contas, acabam ‘punindo’ e
ridicularizando aqueles que não seguem tanto essa lógica, colocando-lhe uma
estampa pública de ‘produção insuficiente’. Nesse caso, não importa mais nada –
rendimento em sala de aula, projetos paralelos (de extensão, inclusive),
repercussão de publicações anteriores –, pois os números falam por si: e assim
o mercado é fortalecido – capitalismo selvagem.
No que
diz respeito ao ‘para quem’ se publica, o problema não é menos grave, já que
poucas pesquisas conseguem de fato chegar às ‘calçadas’. Ao contrário, as
discussões são extremamente elitizadas, fechadas em si mesmas, e para os mesmos
poucos que debatem num ambiente quase que privado, seleto. Até porque, a nossa
grande crença (arrogância) na academia é achar que ‘intelectual’ só pode falar
com/para ‘intelectual’; que ‘especialista’ só consegue ser compreendido
devidamente por outros ‘especialistas’ – afinal, quem de nós quer perder tempo
explicando nossas teorias mirabolantes para pessoas tão mediocremente educadas?
E ponto final.
Mas aí
você vai num congresso que te cobra R$ 400 de inscrição – porque nesses eventos
o que vale mais é a sua fama e o seu apelo, assim como quem determina o preço
de uma roupa é o simbolismo da marca e não a qualidade do produto em si – e sai
de lá com a sensação de que (pensando mercadologicamente) as discussões não
valeram mais do que R$ 50, dado o grau de repetitividade e as apresentações em
escala industrial, com pouco filtro de qualidade e quase nenhum tempo
disponível para um debate realmente qualificado – sem falar que, como o que
vale mesmo é apenas apresentar e publicar, muitas vezes o cidadão espera a sua
vez, fala o que tem que falar no seu GT e vai embora; e as coisas morrem ali
mesmo; afinal, pontuar no Lattes é o que importa. E é dessa forma, dada a
grande demanda (pois cada vez mais gente entra no ‘mercado acadêmico’), que o
negócio de congressos, colóquios e afins está em constante crescimento, devido
ao seu alto grau de lucratividade – financeira e, claro, ‘lattesiana’, já que
organizar eventos também é uma ótima forma de ‘pontuar’.
É por
isso que, na minha mera opinião, pesquisador que só ‘Lattes’ não ‘morde’ – ele
apenas ‘engole’ e ‘vomita’ essa lógica. Não morde porque já foi mordido por um
sistema (perverso) que faz com que em muitos casos o autor visto pela vitrine
do Lattes pareça muito mais competente do que o que ele é de verdade; que
pareça contribuir mais para o seu campo de estudo do que de fato contribui. Não
morde, em suma, porque suas pesquisas são meramente funcionais, feitas apenas
para seu próprio benefício, o de ter um currículo ‘invejável’, e não para de
alguma forma ajudar a melhorar o mundo, sei lá, ou por qualquer outra motivação
menos narcísica. E esse é um dos grandes problemas da academia atualmente: em
vez de estimular a qualidade das produções através do pensamento crítico, por conta
dessa lógica ela acaba contrariamente contribuindo para o conformismo, fazendo
com que o indivíduo que entra na universidade com vontade de produzir aquilo em
que ele acredita saia preocupado apenas em ‘engordar’ o seu currículo Lattes.
Mais
uma vez – só para razoavelmente me precaver de determinadas críticas –, não sou
contra o currículo, de forma alguma – até porque é absolutamente importante e
necessário organizar, categorizar e publicizar aquilo que a gente faz
(inclusive para prestar contas para o governo e a sociedade, que é quem nos
financia): o que eu particularmente não engulo, por mais mastigada que essa
prática já esteja, é essa lógica mercantil que se apropria cada vez mais do
currículo por meio de um uso vazio e irresponsável. Daí que, da mesma forma que
utilizamos o termo ‘academia’ para descrever o lugar que frequentamos para
malhar o corpo, acabamos, assim, mesmo que inadvertidamente, usando a academia
(através do Lattes) apenas para ‘malhar’ o ego. Não que todos sejam assim,
obviamente; mas com certeza existem muitos; muitos mais do que gostaríamos que
existissem. Ou seja, tudo isso – independente do grau de ocorrência e dos meus
possíveis exageros críticos –, portanto, não se trata de uma grande aberração?
Para mim, a resposta está mais que clara…
Disponível em: http://www.comunicacaoepolitica.com.br/blog/2012/02/pesquisador-que-so-%E2%80%98lattes%E2%80%99-nao-%E2%80%98morde%E2%80%99/
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